“NÃO SE PRESERVA A MEMÓRIA DE UM POVO

SEM O REGISTRO DE SUA HISTÓRIA”

Marcos é o segundo irmão entre os quatros da família de Carlos. Casado, pai de duas meninas Marcos mora na cidade vizinha a de seus pais.
De um família tradicionalmente política, ele é o único filho que tem certas ressalvas e procura sempre manter-se afastado do meio, mesmo assim, sempre que seus pais e irmãos se envolvem em eleições, lá está ele apoiando e ajudando da forma que pode, pois nem sempre seu trabalho permite que ele esteja com seus familiares a busca de votos.
Neste ano o caso não seria diferente, exatamente no ano das eleições municipais Marcos fazia questão de ajudar sua família, mas como as meninas estão se preparando para a o vestibular, estudando até mesmo aos sábados, Marcos ligou para avisar que só chegaria pela manhã do domingo, exatamente no dia da eleição.
E assim ele o fez, ao amanhecer o domingo Marcos pegou suas filhas e esposa e foram para a cidade de seus pais, pois se ele não pudesse ajudar a pedir votos, ele sabia que ajudaria pelo menos com o voto de sua família.
No decorrer daquela manhã, os pais de Marcos e seus irmãos não deram conta do atraso da viagem, pois já era hora do almoço quando seu irmão mais novo deu a falta e começou a ligar para ele.
As ligações eram constantes, e a tarde estava caindo como o passar de um segundo, e quanto mais próximo de fechar o horário da votação, mais apreensivo ficavam todos.
As dezessete horas em ponto fecharam-se todas as seções eleitorais e a falta de Marcos já não era mais preocupante, e sim, decepcionante, como poderia um filho desligar o celular e não votar em sua própria mãe?
A apuração rápida dos votos veio minutos após o fechamento das seções e aquele plebiscito eleitoral seria o mais decepcionante para toda família, pois todos tinham Marcos como difícil, mas não ao ponto de deixar de votar na própria mãe, e o pior ainda estava por vir, pois sua mãe perdeu a eleição por dois votos, e os votos de Marcos, de sua esposa e de suas filhas fez a diferença entre a derrota e a vitória daquela eleição.
Na mesa da cozinha da casa dos pais de Marcos, todos conversavam e tentavam tranquilizar sua mãe, mas o único assunto que se ouvia na cozinha era a falta de amor e consideração de Marcos, que sumiu para não votar na própria mãe.
A noite caiu e ainda com a casa cheia o telefone tocou no celular do pai de Marcos, e com espanto ele avisou que era o próprio sumido na linha, antes mesmo de atender o celular, o irmão mais novo pegou o celular de seu pai e começou a falar. Chamando Marcos de irresponsável, moleque, filho desnaturado, como pode fazer sua mãe perder a eleição.
Diante de todos as acusações ainda foram tomando formas sem ninguém intervir naquela conversa exaltada de um lado só, pois era nítido que Marcos não falava uma única palavra em sua defesa.
Quanto maior o silêncio de Marcos, mais exaltado seu irmão ficava, chegando ao ponto de avisar para Marcos esquecer que tinha pais e irmãos, pois “quem com ferro ferre com ferro será ferido”.
Espantado com o silêncio diante de tantas acusações, o jovem irmão de Marcos o indagou se ele não falaria nada em sua defesa, ou Marcos simplesmente se acovardaria diante daquela situação.
Neste momento a cozinha silenciou ao ouvir a voz de Marcos pela primeira vez falando no telefone, e assim foram suas palavras.
“Meu irmão peço perdão pela minha ausência, pois sei que sou difícil como vocês mesmos falam, e sei que muitas vezes pareço mesmo não ser da família, você está coberto de razão.
Mas peço meu último favor, pois não tenho a quem recorrer neste instante, e se não quiser fazer este favor por mim, faça pelas meninas, suas sobrinhas pois elas não têm culpa de ter o pai que tem.
Digo o porquê da minha falta de consideração agora, mas peço que não me interrompa, pois diante de tanto sofrimento que estou-lhes causando não sei se terei voz para completar minha narração neste momento de dor.
Hoje às sete hora da manhã logo após as meninas carregarem o carro, passamos pelo posto de gasolina e seguimos viagem como combinado. Andamos aproximadamente vinte quilômetros quanto deparei-me com duas carretas fazendo ultrapassagem na curva em alta velocidade.
Para nossa infelicidade estávamos entre dois barrancos, não tive tempo para pensar e tentei subir no barranco com o carro, mas nada pude fazer e a colisão foi certeira.
Minutos após acordei sem sentir as pernas e com gosto horrível de sangue na boca, do meu lado minha pior visão, a visão que nunca esperava ver. Vi as meninas pálidas, quietas e sem vida, ao meu lado minha esposa ainda respirava, porém com muita dificuldade.”
Neste momento o irmão de Marcos quis falar, porém Marcos pediu silêncio e continuou.
“Isso aconteceu em torno de sete e meia da manhã, eu fiquei em choque, mas tinha que ter forças para tentar salvar minha esposa. Estranhos que passavam pelo lugar nos socorreram deixando as meninas dentro do carro, naquele momento eu tive a certeza de suas mortes, mesmo assim falava para minha esposa que elas estavam bem e já estavam no hospital.
No hospital, horas mais tarde eis que minha amada não aguentou e veio a morrer também.
Por isso não dei notícias, pois sei como é importante para a família o processo eleitoral, e se naquela hora avisasse sobre o acidente, certamente a eleição terminaria ali e como as meninas já estava mortas e depois perdi minha esposa, não tinha nada que pudessem fazer por mim.
Consegui ocultar até o momento todo acontecimento, acho que foi por Deus mesmo, pois todas às vezes que os policiais perguntaram sobre nossa família eu avisei que éramos sozinhos, não tínhamos ninguém na vida além um do outro. Desta forma vocês teriam o dia inteiro para a política e eleger nossa mãe sem se preocuparem comigo.
Mas agora peço meu último favor, ajude a dar um enterro digno as meninas e a minha amada, infelizmente acho que não andarei mais e não é justo deixá-las à minha espera no necrotério.”
E desculpe se causei sempre em vocês tantas dores.” …
Assim é o julgamento humano, nós apontamos os defeitos das outras pessoas sem ouvir suas defesas, pois a vida tem dois lados, o nosso que sempre achamos o correto, o justo é certo. E o outro lado que muitos não esperam ouvir, pois o outro sempre está errado.
Assim é a vida.
E para você:
Qual o valor da vida?

Leandro Campos – vice-presidente da Academia