“NÃO SE PRESERVA A MEMÓRIA DE UM POVO

SEM O REGISTRO DE SUA HISTÓRIA”

Não se pode negar que a dança está muito além de mover partes do corpo. Está além de
seguir um ritmo, de acompanhar passos, desenvolver técnicas e se exibir. Dançar é o
além de. Uma prática que nos capacita e nos expande, ela pode ser um lugar, uma
postura, um convite, uma provocação, uma afronta, uma voz, uma decisão, uma
revolução.
Dessa forma eu danço. E dançando sempre descubro novas razões para dançar. Já
dancei e danço sem intenção nenhuma, mas ninguém sai ileso de uma dança.
Para quem só assiste, ela pode ser uma afronta, a quem quer se fazer invisível, uma
ameaça, àquele que se sente aprisionado no mesmo lugar, uma viagem para o
desconhecido. E nada dá mais medo do que o que se desconhece. Mover-se de tal forma
dançante, pode ser um sorriso com todo o corpo e receber um sorriso dessa amplitude,
contraditoriamente, pode ser desconcertante.
Para o bem e para o mal o movimento comporta, de alguma maneira, uma agressão, na
medida em que, quem não se permite a ele, se constrange, se intimida.
Verbalizar sonhos e desejos íntimos por vezes parece difícil, dançar é, em parte, realizálos. Dançar o que não sabemos nomear, o que não entendemos e sentimos, surge como
processo de cura. Os obstáculos, os medos, os problemas, se transformam em nós,
calosidades do corpo que precisam se dissolver e aí está o papel da dança, que nada
mais é do que a poesia do corpo. E a poesia, segundo a filósofa, Viviane Mosé, em sua
Receita para arrancar poemas presos, tem o poder de diluir esses males. Ao tentar
resolver problemas insolúveis e desesperadores, somos tomados por certa imobilidade e
a dança surge feito um abraço, uma anestesia, uma pausa, um calor, um descanso no
confronto.
O corpo sabe. Sabe muito. Aprende todo o tempo. O corpo respira intenções, silencia e se
torna imóvel, quase invisível para se defender, porque não sabe que sabe e, por isso,
nem sempre utiliza toda a potência de sua linguagem a seu favor: falar consigo mesmo;
com o outro; saber o que dizer, são atributos também do corpo, em especial do corpo que
se permite a exploração de um movimento sempre novo, que se observa, se questiona,
se revolta, se propõe, se pensa.
“E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não
podiam escutar a música.” Esta citação, frequentemente atribuída a Nietzsche, talvez não
seja dele, mas não importa a autoria e sim seu viés de realidade. Sendo assim, os que
seguem dançando, na insanidade da loucura, seguem felizes. Loucos por ouvir e sentir
nossa melodia particular, por nos expressar com nosso movimento genuíno. E isso me faz
pensar que talvez nada seja mais ameaçador que a loucura, nada seja mais louco que um
corpo livre e, ainda, nada seja mais livre, que um corpo que dança.
Se não puder dançar, esta não é minha revolução, certamente essa famosa frase de
Emma Goldman, não está falando de dança, mas utiliza o termo de forma eficiente. Eu a
leio como uma incitação à liberdade. Construir dia a dia uma revolução é um resumo
possível da biografia de Goldman, que lutou com todas as armas disponíveis a favor da
liberdade. Pois pensemos, se o que se busca é o direito a uma liberdade plena e
absoluta, dançar ou não dançar não deve ser a questão. Diante do conceito polêmico e
contraditório de liberdade, o movimento deveria surgir como uma opção, assim como o
direito de ficar parado.

Girlene verly é acadêmica correspondente