“NÃO SE PRESERVA A MEMÓRIA DE UM POVO

SEM O REGISTRO DE SUA HISTÓRIA”

Quinze pro meio dia e ele andava descalço, só de bermudas, no meio da pista de carro. A loucura vitrificada nos olhos. Quase 1,90m de solidão caminhando silente. Inalcançavel.

Eu voltava pra casa depois de uma das noites mais embreagadas de alegria, gargalhada e afeto, na melhor companhia. Éramos dois polos estranhamente opostos, numa mesma latitude. E o que quer que tenha retirado aquele sujeito do meu mundo, me arrebatou, em um maremoto de perguntas lascerantes, como cair no coral.

Meu carro parado no sinal, o AC no máximo,  os vidros fechados, uma trilha sonora brasileiríssima mexia meu corpo recém desperto por banho, beijo e café.

Na janela, ele. Imenso. Estático. Atravessou, numa mirada, o vidro e meu coração desavisado.

Perdi a atenção no semáforo. Uma buzina me acordou em dó e dor. Num caixote de porquês, esfolei a alma na areia grossa da incompreensão,  sem sinal de consolo.

O que leva, como se chega, em quem se desencadeia, por quais caminhos se alcança, por que se escolhe, se escolhe? Foi atribuído, numa roleta russa de sanidade, está mais ou menos na vida do que eu?

Hiper conectado ou desligado do mundo… Deste que me deslumbra e sinto. E tento ler, perceber, decodificar… E amo e odeio em apaixonada gangorra.
Jogados no mesmo metro de quem decidiu ficar, de algum jeito, fisicamente ali.

Abri o vidro. Vi os lábios muito rachados dele. Estendi minha garrafa d’água ainda fresca e uma barra de cereais que já morava na bolsa há umas semanas. Mas foi a insuspeita delicadeza das imensas mãos coreografando o ar quente que encerraram, em mim, qualquer temor.

Disse um bom dia e obrigado barítonos.  Demorou os olhos de vidraça nas embalagens como quem embarca na trama do livro preferido. Absorto. Levemente sorridente. Lá… onde eu não sei como ou porquê se chega. Só. Ou parte de um bando que eu, na minha imensa limitação,  não vejo.

Canto “mesmo hostil, qualquer gigante pode ser gentil” , relembro a doçura por um instante, e isso basta pra eu voltar pra mim. Num sábado. Numa cidade qualquer.

Gabriela Braga

Acadêmica Correspondente