“NÃO SE PRESERVA A MEMÓRIA DE UM POVO

SEM O REGISTRO DE SUA HISTÓRIA”

Calunga recebe uma bala no peito e começa a dançar uma valsa imaginária, como se fosse Arlequim. Esse plano final, presente no filme “A Grande Cidade” (1966), de Cacá Diegues, é descrito com entusiasmo por Antonio Pitanga, intérprete de Calunga, ao compositor Sérgio Ricardo, no longa-metragem “Pitanga” (2017), que marcou a estreia da atriz Camila Pitanga, 42, na direção, ao lado de Beto Brant.

Todas as vezes que essa cena “passa pelas retinas” de Camila, a reação se repete. “Já a assisti várias vezes, no set, na sala de montagem, durante as exibições, e sempre me emociono genuinamente”, confirma. Outro “momento memorável que cala fundo em sua alma” é aquele em que Camila e o pai falam sobre o casamento de Pitanga com a mãe da atriz. “O coraçãozinho dá uma apertada amorosa”, admite.

No próximo fim de semana, Camila e Antonio Pitanga serão homenageados na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes. No sábado (25), eles marcam presença em uma mesa de debates. Embora participe como homenageada pela primeira vez, para Camila o festival não é propriamente uma novidade. Em 2018, ela esteve lá justamente para lançar “Pitanga” – e se admirou com a plateia. “Como conheço o filme de trás pra frente, a paisagem do público me instiga”, observa.

Pessoas que se organizaram para estar ali, outras que levaram a própria cadeira, gente com engradado de cerveja e transeuntes que resolveram dar uma espiada e acabaram ficando até o fim chamaram a atenção da espectadora atenta. “Essa projeção aberta, na praça, abre uma possibilidade muito democrática de ver cinema”, aplaude Camila. “As pessoas riram, se emocionaram, debateram. Foi inesquecível”, diz.

Polêmica

Camila é entusiasta da curadoria do festival. “Adorei conhecer esse panorama que valoriza o cinema independente, questiona e esgarça os limites da linguagem cinematográfica que está mais fora do eixo, com uma pluralidade de sotaques que quebra um paradigma importante”, destaca. Na programação da mostra, estão previstas sessões com “Pitanga”, “Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios” (2011), protagonizado por Camila, “Na Boca do Mundo” (1928), única incursão de Antonio Pitanga na direção, e, para completar, o inédito “Os Escravos de Jó”, com o veterano ator no elenco.

“Impossível não ficar honrada e emocionada por ser homenageada ao lado do meu pai, uma pessoa que dedicou mais da metade da vida ao cinema. Ele é uma espinha da minha coluna vertebral em princípios e valores ainda que tenhamos trajetórias distintas, somos contemporâneos do que o Brasil vive na cultura e estamos afinados com o que queremos propor”, declara Camila, que aproveita para comentar a mais recente polêmica na área.

Após um discurso com referências nazistas, o dramaturgo Roberto Alvim foi exonerado, ontem, do cargo de secretário de cultura. “Vi esse discurso com total indignação e repúdio. Não tem nada que justifique ou explique esse delírio de uma pessoa totalmente despreparada e perturbada que gerou uma recusa geral. Não tinha como passar e naturalizar esse tipo de acinte e desrespeito. Não há nada que possa explicar, é inaceitável”, dispara.

“Quero ajudar a construir um país democrático, antirracista, a favor da diversidade. Cultura é cidadania. É importante ter liberdade de expressão e não perder essa dimensão coletiva de pertencimento a este Brasil tão sofrido e desigual”, completa. Apesar disso, ela acredita que conquistas relevantes não serão perdidas. “Com o advento das cotas raciais, criamos uma geração muito potente. A força desse movimento não volta para trás, porque é o poder pela autoestima e pela consciência. O avanço considerável do movimento negro, com sua pluralidade de vozes, não vai se perder, mesmo em meio ao caos da nossa realidade de trevas atual”, aposta. 

Imaginação

A mostra de Tiradentes tem como tema neste ano “A Imaginação como Potência”. “Imaginar é uma necessidade do ser humano”, sublinha Camila, que não restringe o gesto a algum segmento. “É uma temática que faz muito sentido quando se fala no campo artístico, mas não é voltada só para os artistas. O médico, o professor, o torneiro mecânico precisam abstrair para elaborar suas dores e vontades”, afiança.

Com relação ao cinema, ela acredita que “a imaginação tem o papel de provocar, tirar o espectador da sua zona de conforto e ampliar os seus pontos de vista”. “O teatro pode fazer o mesmo”, conclui. 

Fonte: O Tempo