Na sexta-feira, 22, às 11h, o imponente navio quebra-gelo russo Akademik Tryoshnikov, do Instituto de Pesquisa Ártica e Antártica de São Petersburgo (AARI), zarpará do porto de Rio Grande, no litoral sul do Rio Grande do Sul, a caminho da Antártica, o “continente gelado”. A bordo dele estarão 61 cientistas, dos quais 27 brasileiros, todos vinculados a instituições associadas ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Criosfera (INCT da Criosfera) e a projetos de pesquisa do Programa Antártico Brasileiro (Proantar). Esse conjunto de pesquisadores fará a primeira circum-navegação costeira antártica chefiada pelo Brasil, um marco na história da pesquisa de campo nacional.
“Essa é, de fato, a maior expedição antártica já liderada pelo Brasil”, destaca Luiz Henrique Rosa, professor do Departamento de Microbiologia da UFMG e coordenador do núcleo de microbiologia do INCT da Criosfera. “O navio vai circular a Antártica inteira e voltar. São 14 milhões de quilômetros quadrados”, informa o professor, que já participou de mais de uma dúzia de expedições antárticas e foi um dos pesquisadores que estiveram à frente da reativação da Estação Antártica Comandante Ferraz (EACF), em 2020, oito anos após o incêndio que atingiu a base brasileira. Ao todo, a atual expedição vai percorrer trajeto de mais de 20 mil quilômetros, em uma viagem de 60 dias. O retorno está programado para 25 de janeiro.
‘Testemunhos de gelo’
A expedição terá 16 pontos de parada para coleta de “testemunhos de gelo”, conforme se afirma num dos releases de divulgação produzidos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que coordena a expedição. “Durante a travessia, os cientistas enfrentarão tempestades, temperaturas extremas e as difíceis condições das águas antárticas, um desafio não apenas para a resistência física, mas também para o foco no trabalho de coleta e pesquisa. A bordo do Akademik Tryoshnikov, a equipe terá a sua disposição laboratórios de ponta e instrumentação científica avançada para análises atmosféricas, biológicas e geofísicas, todos adaptados para operar em condições polares”, anota-se.
Luiz Rosa lembra que o navio conta com um helicóptero, que facilitará o trânsito dos pesquisadores para a parte mais central do continente. “Isso é importante, porque os pesquisadores não ficarão apenas no mar, eles também vão acessar a área continental, assim como lugares que estão sofrendo muito a influência climática, isto é, as geleiras que vão se soltar no futuro próximo”, explica o pesquisador. Para Rosa, a missão consolida o Brasil como um dos principais líderes em pesquisa polar na América Latina e representa um marco para a ciência brasileira, no que diz respeito à sua atuação no continente antártico.
Geleiras e mudanças climáticas
O coordenador da expedição é Jefferson Cardia Simões, do Centro Polar e Climático (CPC) da UFRGS. Segundo ele, a expectativa é que a missão possibilite compreender melhor o impacto das mudanças climáticas nas geleiras e nos ecossistemas costeiros da Antártica, mapear novos hotspots de biodiversidade marinha e coletar dados da resposta dada pela fauna polar às variações climáticas, à circulação oceânica e ao aumento da poluição marítima, como os microplásticos e os contaminantes emergentes. “Esperamos reunir dados sobre a linha de flutuação dessas geleiras e, simultaneamente, apoiaremos um levantamento geofísico dessas frentes de geleiras para entender como elas respondem ao aquecimento da atmosfera e do oceano”, ele explica.
Segundo Jefferson, o pioneirismo da expedição reside no fato de ela ser realizada o mais perto possível da costa da Antártica, se comparada a expedições realizadas anteriormente. Ele explica que, na missão, serão coletadas diversas amostragens ao longo da costa para estudos biológicos, químicos e físicos, com foco em dados atmosféricos, geofísicos, glaciológicos e oceanográficos do manto de gelo antártico e de seu entorno. A expedição também inclui um inédito levantamento aéreo das massas de gelo, com o objetivo de monitorar o comportamento das geleiras diante das mudanças climáticas. Uma tecnologia avançada de satélite possibilitará a troca de informações via texto, áudio e vídeo e acesso à internet durante todo o percurso, possibilitando a transmissão de dados em tempo real.
Fungos extremos
Há quase duas décadas, Luiz Henrique Rosa vem desenvolvendo projetos de pesquisa na UFMG relacionados ao continente Antártico. Mais particularmente, ele tem pesquisado os fungos presentes nos diferentes ecossistemas da Antártica e, mais recentemente, nos ecossistemas do Ártico, no extremo Norte do planeta. Ele coordena o projeto Extremófilos, que visa situar esses fungos em relação às mudanças climáticas e em suas interconexões com a América do Sul.
No âmbito do Extremófilos, tenta-se avaliar o potencial desses fungos para a produção de substâncias bioativas de interesse da indústria e da agricultura. Integrante do Programa Antártico Brasileiro (Proantar), o Extremófilos dá sequência ao Mycoantar, projeto em que já se estudou (entre 2013 e 2018) a possibilidade de utilização dos fungos da Antártida como fontes de antibióticos.
Em razão de compromissos acadêmicos em Minas Gerais, Luiz Henrique Rosa não pôde embarcar na expedição que começa hoje. A pesquisa que ele coordena na UFMG, relacionada aos extremófilos, será representada, na viagem, por três pesquisadores parceiros. Eles farão as coletas de dados e de amostras para o projeto Extremófilos paralelamente às coletas relacionadas às próprias investigações. “Em especial, eles vão coletar amostras de ar, solos, sedimentos marinhos e de lagos e plantas para as nossas pesquisas”, explica Luiz.
Os três pesquisadores são o doutorando em fungos, algas e plantas Fábio Leal Viana Bones, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e os agrônomos Márcio Rocha Francelino e José João Lelis, professores da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Os dois últimos integram o Núcleo Terrantar, projeto de pesquisa em que são estudados os ecossistemas terrestres da Antártica desde a perspectiva da geologia. À equipe composta por todos eles, foi dado o nome de “GeoExtremoBiologia”, de modo a abarcar os diferentes campos que serão contemplados em suas pesquisas e coletas.
Também integram a “GeoExtremoBiologia” – mas sem participação na expedição – a engenheira florestal e botânica Micheline Carvalho Silva, professora do Departamento de Botânica da Universidade de Brasília (UnB), e Paulo Eduardo Câmara, docente do mesmo departamento e orientador da pós-graduação stricto sensu da UFSC. Paulo Câmara é o orientador de Fábio Bones em seu doutorado. Os três integram a equipe como representantes do BryoAntar, projeto de pesquisa em que são estudadas as briófitas (tipo de plantas cujo exemplo mais conhecido é o musgo) presentes na Antártica.
Coletas e medições inéditas
Luiz Rosa conta que, normalmente, os pesquisadores brasileiros que investigam o continente antártico trabalham na porção Norte do seu território, em razão de sua proximidade com o continente americano. Isso porque pesquisas na porção Sul demandam bastante mais recursos. “Para esse tipo de expedição, é preciso contratar navio quebra-gelo, investir ainda mais em logística, reservar períodos mais longos para as viagens. É bem mais complicado.” Disso decorre a grande empolgação dos pesquisadores com a viagem que começa hoje: nela, será possível fazer coletas e medições inéditas. Além dos brasileiros, a expedição conta com a participação de cientistas de Argentina, Chile, China, Índia, Peru e Rússia.
Para o professor e pesquisador do Instituto de Ciências Bioloógicas (ICB) da UFMG, a concretização da circum-navegação que está sendo posta em curso deve ser creditada mesmo ao grande esforço de Jefferson Simões, que, além de ser o coordenador científico do Centro Polar e Climático (CPC) da UFRGS, coordena o INCT da Criosfera, também sediado na instituição gaúcha. Foi Jefferson Simões quem conseguiu captar os recursos necessários para viabilizar a expedição. Nela, lembra Luiz Rosa, serão feitas coletas muito diversas, relativas a campos como geologia, geologia marinha, biologia, glaciologia, oceanografia e ciências atmosféricas, capazes de enriquecer as pesquisas brasileiras com dados robustos. “Tudo isso será ‘amostrado’ para que possamos entender esse outro lado da Antártica e comparar com os dados que já temos”, demarca.
A Expedição Internacional de Circum-Navegação Costeira Antártica, como está sendo formalmente denominada, foi 97% financiada pela fundação suíça Albédo Pour la Cryosphère, dedicada ao estudo e à preservação da massa de neve e do gelo planetário. Ela também conta com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) do Brasil e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs).
Fonte e foto: UFMG