sexta-feira, 18 de outubro de 2024
“NÃO SE PRESERVA A MEMÓRIA DE UM POVO
SEM O REGISTRO DE SUA HISTÓRIA.”

O uso indiscriminado de telas digitais por crianças pode causar problemas motores, cognitivos e na visão, além de afetar suas interações sociais e habilidades socioemocionais. Segundo o Relatório TIC Kids Online Brasil 2023, 95% das crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos usam a Internet, o que equivale a 25 milhões de pessoas. O primeiro acesso ocorre cada vez mais cedo, com 24% dos entrevistados relatando que a exposição às telas começou antes dos 6 anos de idade.

A Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), através do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa em Neurodesenvolvimento Humano (Linha), investiga os impactos do uso de mídias digitais na infância e na adolescência, com ênfase especial na análise de fatores de vulnerabilidade e proteção em condições de neurodesenvolvimento típicas e atípicas. Resultados preliminares de um estudo realizado pelo Laboratório, em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), indicam que, durante a pandemia, o aumento do uso de dispositivos digitais em função da falta de interações sociais diretas revelou um impacto direto na saúde mental e comportamental das crianças e suas famílias.

De acordo com a professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPG-Psi) da UFJF, Nara Andrade, a pesquisa mostra que o tempo de tela não só aumentou drasticamente durante a pandemia, mas esteve correlacionado com níveis mais elevados de estresse parental. O estudo investigou também a relação entre o tempo de uso de tela em crianças de até 48 meses de idade e seus responsáveis e a presença de sinais e sintomas de ansiedade e depressão maternas. Ou seja, os resultados indicam uma associação significativa entre o tempo diário de uso de telas pelas crianças e uma maior prevalência de sintomas de ansiedade e depressão em suas mães.

Da mesma forma, o tempo de uso de tela pelos responsáveis também se correlacionou positivamente com esses sintomas. Este efeito permaneceu robusto mesmo após ajuste para variáveis como nível educacional materno, renda familiar e presença de suporte social. “Esses achados estão alinhados com a literatura que ressalta a retroalimentação entre estresse parental, especialmente entre mães, e uso excessivo de telas, em um ciclo vicioso, complicando a autorregulação emocional e comportamental”, explica Nara.  

Mediação parental

A psicóloga Juliana Soares é mãe de duas crianças – Sophia, de quatro anos, e Luísa, de um ano e nove meses. Ela relata que evita ao máximo que as filhas passem por muito tempo em frente às telas do celular e que busca realizar outras atividades que irão contribuir com o desenvolvimento cognitivo e motor das meninas, como colorir, fazer contornos de formas geométricas, brincar com massa de modelar e com bonecas, e participar de atividades de contação de histórias que estimulem tanto a leitura quanto a criatividade e dicção. “Não vejo como algo positivo o uso de telas. A criança é o ambiente em que vive, ela é a somatória de tudo aquilo que faz parte da dinâmica e rotina familiar.”

Juliana relata que conhece muitas mães que enfrentam dificuldades em relação ao uso de telas, principalmente de maneira excessiva, embora não consiga enxergar um limite saudável em relação a esse uso. Por não ser fácil estar sempre buscando formas de mantê-los afastados do mundo virtual, pela rotina cansativa das mães que trabalham fora e muitas vezes por não possuírem uma rede de apoio, a tela acaba sendo um refúgio das mães; porém as consequências são devastadoras e o dever como protetores é sempre de estimular o desenvolvimento saudável dos filhos, superando as dificuldades do dia a dia.

Impactos

Para Nara, o uso de telas por crianças precisa ser avaliado com base em três fatores essenciais: contexto, conteúdo e tempo. O desenvolvimento infantil é uma fase de grande plasticidade cerebral, onde o tipo de exposição digital pode ter efeitos variáveis. No contexto adequado, por exemplo, o uso de tecnologias pode fortalecer vínculos, como em chamadas de vídeo entre crianças e familiares distantes, promovendo laços afetivos e interação social. No entanto, o uso de conteúdo inadequado ou em excesso pode interferir diretamente no neurodesenvolvimento.

Nos primeiros anos, o desenvolvimento das funções executivas, habilidades motoras e regulação emocional está em um estágio crítico. A exposição prolongada a conteúdos passivos (como televisão ou vídeos não interativos) pode atrasar a linguagem, diminuir as interações sociais e até impactar a maturação do córtex pré-frontal, responsável pela atenção, controle de impulsos e planejamento.

“A tendência do uso precoce de telas por crianças é cada vez mais preocupante, pois afeta o desenvolvimento infantil de maneira multidimensional. Crianças em tenra idade, particularmente aquelas com menos de dois anos, estão em uma fase crítica de desenvolvimento neuropsicológico. A exposição a telas durante esse período tem sido associada a déficits na linguagem, atenção e regulação emocional. Crianças pequenas precisam de interações humanas e atividades sensório-motoras para garantir um desenvolvimento saudável”, ressalta a professora.

Crianças precisam de controle e cuidado parental durante o uso de telas. É o que reforça a psicanalista e professora da UniAcademia/JF, Anna Costa Ribeiro. Segundo ela, no início da vida, especialmente nos primeiros anos, a tela não é necessária em quase nenhum aspecto do desenvolvimento da criança, sendo a maioria das necessidades integrais supridas pelas interações com cuidadores, outras crianças e pelo ambiente em que ela vive. “Não acredito que possa ter mais benefício que malefício. Pelo contrário, os conteúdos de tela não são adequados à velocidade de processamento e compreensão do cérebro da criança pequena, causando irritabilidade e especialização cerebral numa época em que deveria se priorizar as associações das áreas do cérebro.”

Transtornos

O uso excessivo de telas em crianças diagnosticadas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e outros transtornos do neurodesenvolvimento, como o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), tem sido objeto de crescente atenção na literatura científica. Com base em autores internacionais sobre o tema, Nara ressalta que crianças com TEA frequentemente apresentam respostas exacerbadas a estímulos sensoriais, e o conteúdo das mídias, caracterizado por sons, luzes e mudanças rápidas de estímulos, pode agravar essa hiper-reatividade sensorial. A exposição contínua a esses estímulos pode resultar em aumento da irritabilidade, maior agitação e dificuldades de autorregulação emocional, além de intensificar comportamentos repetitivos e estereotipados presentes no TEA.

Outro aspecto crítico é a relação entre o uso excessivo de dispositivos eletrônicos e o desenvolvimento cognitivo e social dessas crianças. Pesquisas recentes mostram que a exposição prolongada às telas está associada a atrasos no desenvolvimento da linguagem e da comunicação, habilidades que já são frequentemente prejudicadas em crianças com TEA. Além disso, o uso excessivo de telas pode interferir na capacidade de manter o foco em tarefas não mediadas pela tecnologia, comprometendo ainda mais o aprendizado e as interações sociais.

A exposição a mídias rápidas, com mudanças constantes de estímulos, também pode exacerbar comportamentos impulsivos, aumentar a desatenção e comprometer a autorregulação emocional em crianças com TDAH. Essa relação é ainda mais pronunciada no que diz respeito à privação de sono, uma vez que crianças com TDAH já apresentam dificuldades para regular seu sono. O impacto também é preocupante em crianças com TEA, comprometendo o ciclo de sono-vigília e afetando negativamente o comportamento diurno, o aprendizado e a capacidade de interação social. “Essas crianças são particularmente vulneráveis aos impactos negativos desse comportamento, devido a características específicas de suas condições, como a hiper-reatividade sensorial e dificuldades de autorregulação emocional.”

Pesquisa

Em parceria com o Comprehensive Assessment of Family Media Exposure (Cafe), consórcio internacional que reúne especialistas em desenvolvimento infantil e ecologia de mídia familiar, a estudante de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFJF, Fernanda Monteiro, está desenvolvendo a pesquisa intitulada “Exposição de crianças pequenas à mídia, mediação parental e ecologia de mídia familiar”, que propõe uma análise sobre como a dinâmica familiar impacta e influencia o uso de mídias digitais por crianças pequenas, bem como as estratégias adotadas por pais, cuidadores e responsáveis para monitorar o uso dessas tecnologias.

O objetivo central da pesquisa é compreender de forma abrangente os potenciais custos e benefícios do uso de tecnologias digitais durante a primeira infância, indo além do simples foco no tempo de tela. Ao longo de sua trajetória como psicóloga e pesquisadora, Fernanda começou a notar mudanças significativas na maneira como as pessoas passaram a interagir com as mídias digitais. “A presença cada vez maior de telas e seu uso cada vez mais precoce despertou minha atenção, especialmente em relação às crianças de zero a três anos, uma fase crucial para o desenvolvimento motor, cognitivo e social, em que a interação direta com pais e cuidadores é fundamental para a aprendizagem inicial.”

A pesquisa é realizada com cuidadores de crianças de 6 meses a 3 anos, que respondem ao Media Assessment Questionnaire (MAQ) de forma on-line. O questionário foi desenvolvido pelo Cafe Consortium e adaptado para o português pela autora, sendo aplicado pela primeira vez no Brasil. A coleta de dados inclui informações sobre o uso de mídia pelas crianças e seus pais, além de escalas para medir estresse parental e distração tecnológica. Busca também analisar as relações entre a exposição de crianças à mídia, a mediação parental e o contexto mais amplo da ecologia de mídia familiar. Especificamente, visa identificar os padrões de exposição à mídia das crianças, considerando a frequência e o contexto desse uso; avaliar o uso da mídia digital pelos cuidadores; e investigar as práticas de mediação parental, como explicar e discutir o conteúdo assistido com a criança e estabelecer limites.

“Conforme me aprofundei no tema, percebi que era necessário ir além do tempo de tela e explorar o contexto em que as crianças utilizam essas mídias: como é o ambiente familiar, se o acesso às telas é livre, acompanhado por um adulto ou supervisionado”, explica. O período de coleta de dados começou em 23 de julho de 2024 e segue aberto possivelmente até o final do primeiro semestre de 2025. Para responder o questionário, basta acessar o link da pesquisa 

Rede de apoio

Para a professora Nara Andrade, “a criação de uma rede de apoio psicossocial robusta é vista como essencial para reduzir a sobrecarga das mães e promover um desenvolvimento infantil saudável. Políticas públicas com ênfase na equidade de gênero são fundamentais para garantir o direito das mulheres e criar um contexto de desenvolvimento saudável para as crianças”. A psicóloga Juliana Soares ressalta também o papel dos responsáveis em manter as crianças no mundo real. “Busquem sempre atividades criativas, que desenvolvam coordenação motora e interação social, e estimulem habilidades de raciocínio; essas ações aproximam os pais, fortalecem os vínculos e criam memórias afetivas. Ensinem aos filhos um outro formato de mundo, o presencial, para que eles não se sintam ‘à vontade’ no mundo virtual.”

A professora Anna Ribeiro também recomenda que o foco no desenvolvimento infantil, principalmente na primeira infância, que vai de zero a três anos, deve ser para a livre motricidade, trocas verbais, contato físico, rotina, limites e tempo lúdico, dentre outras atividades nas áreas que irão preparar a criança para receber o conteúdo de telas nos anos posteriores. “Os pais deveriam acompanhar a vida dos filhos e não o uso de telas. Não há como negar a existência das telas nos tempos atuais, mas devemos pensar na necessidade de cada fase do desenvolvimento infantil. Definitivamente, tela não é uma necessidade da tenra infância. Entretanto, em se optando por fazer uso, que seja por pouco tempo, em momentos específicos para a tela e que jamais seja feito para distração de outras atividades.”

Fonte: UFJF

Foto: imagem ilustrativa/ freepik

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