A sabedoria sem força é uma biblioteca trancada, mas a força sem sabedoria é como um livro em branco encadernado em ouro
Por Carlos Starling*
Na manhã de São Sebastião, o espelho me devolveu um olhar diferente. O tempo, esse artesão silencioso, havia tecido mais algumas linhas em meu rosto. Contemplei, então, aquela figura enigmática que me olhava. Olhos nos olhos, seria um “velho novo” ou um “novo velho”? Talvez, o “velho contemporâneo” – essa criatura híbrida que dança entre o crepúsculo e a aurora, carregando no peito o fogo de Prometeu e nos ombros a sabedoria de Cronos.
Vestido em suas cores fluorescentes como um pavão urbano, exibindo músculos esculpidos em templos de ferro e proteína, ele é o retrato vivo de nossa época. Um quadro digital emoldurado por filtros que ocultam o vazio do ser. Como uma tela em branco pintada apenas nas bordas, ostenta uma casca reluzente que esconde um interior ainda por preencher.
A sabedoria sem força é uma biblioteca trancada, mas a força sem sabedoria é como um livro em branco encadernado em ouro. Eis o “velho contemporâneo” – um mosaico de contradições dançando no palco da vaidade. De que serve um corpo de atleta se a mente mal consegue decifrar os enigmas mais simples do cotidiano?
Somos a geração abençoada pela química e apadrinhada pelos seguros. Por trás de sorrisos branqueados como pérolas e dietas mais miraculosas que a multiplicação dos pães, esconde-se a conspiração silenciosa da arte de burlar o tempo. A “sinistralidade” ecoa pelos corredores corporativos como um mantra profano, enquanto a juventude se torna uma commodity mais valiosa que o próprio ouro dos dentes obturados.
Como um relógio sem ponteiros, o “velho contemporâneo” flutua num limbo temporal, negando-se os pequenos prazeres da idade, tais como o direito a uma sesta depois do almoço, à dignidade de um joelho que estala como um instrumento musical matutino. Em vez disso, corre em esteiras infinitas, perseguindo uma juventude que, como um horizonte, se afasta a cada passo.
Entre halteres polidos e shakes multicoloridos, emerge uma nova espécie de cidadão, o qual miro com espanto e preocupação, os novos velhos e “pré-púberes políticos”. Crianças vestidas de adultos que habitam um mundo de extremos digitais. São os novos xamãs das redes sociais, pregando suas verdades absolutas em 280 caracteres. Como pequenos deuses do algoritmo, constroem suas realidades paralelas em bolhas digitais que crescem no fermento da ilusão, em que o debate se transforma em guerra e a razão em munição.
Esses novos velhos profetas do mundo digital professam suas doutrinas com a certeza inabalável dos inexperientes. São os filhos da era do instantâneo, cuja profundidade do pensamento foi substituída pela velocidade do compartilhamento. Brandindo hashtags como espadas e memes como escudos, transformaram a política em um videogame, no qual não existem consequências reais, apenas pontuações e likes.
Em seus templos virtuais, onde a complexidade é heresia e a nuance é pecado, cultivam uma forma peculiar de fundamentalismo digital, em que o mundo pode ser dividido em preto e branco, em zeros e uns, em amigos e inimigos e machos e fêmeas. São os novos inquisidores da era digital, sempre prontos para o próximo cancelamento, a próxima cruzada online, o próximo linchamento virtual.
Como pequenos Narcisos debruçados sobre as telas de seus smartphones, veem apenas o reflexo das próprias convicções, multiplicadas infinitamente pelo espelho das redes sociais. A democracia, para eles, não é mais o exercício do diálogo e do consenso, mas uma batalha campal onde a vitória é medida em seguidores e engajamento.
O perigo está na metamorfose física desses “pré-púberes políticos”, cada vez mais mergulhados na defesa da testosterona nas empresas e na política. Não há nada de novo em suas ideias. Pelo contrário, são ideias velhas em corpos novos. Profetizam um retrocesso civilizatório, a lei do mais forte, com abandono do paradigma dos direitos humanos, do cuidado com os mais vulneráveis.
Os novos velhos, mergulhados na política, são o retorno ao neocolonialismo, com exploração sem limites da natureza e na escravização de todo aquele que não seja seu próprio espelho. Enquanto isso, o velho novo observa de longe, como uma plateia silenciosa num teatro do absurdo. São os invisíveis, os que carregam no rosto as marcas honestas do tempo, mas não encontram lugar nos comerciais nem nos sonhos de consumo da sociedade. Afinal, quem quer ser lembrado que somos todos atores num palco temporário?
E assim segue o “velho contemporâneo”, equilibrista numa corda bamba estendida entre o ser e o parecer. Um corpo jovem carregando uma mente que, muitas vezes, se recusa a crescer. Um mundo no q ual envelhecer é pecado e ser jovem é insuficiente. Tudo isso ao som da sinfonia das caixas registradoras, que transformam nossa angústia existencial em lucro líquido.
O “velho contemporâneo” é o Sísifo moderno, eternamente empurrando a pedra da juventude montanha acima, sem perceber que a beleza da jornada está justamente em aceitar sua finitude. E talvez seja esse o segredo que sua cegueira não lhe permite enxergar: a juventude não está na ausência de rugas, mas na presença de curiosidade, sonhos e amor.
Na manhã de São Sebastião, as flechas do tempo continuam seu voo certeiro. E nós, velhos contemporâneos, velhos novos, ou novos velhos, seguimos dançando nossa valsa descompassada com o tempo, alguns fugindo, outros perseguindo, poucos aceitando. Que venham as flechas – afinal, são elas que marcam nossa passagem por esse palco efêmero da existência.
*Carlos Starling é infectologista e atuou como chefe do Comitê de Crises da Pandemia da Prefeitura de Belo Horizonte. É membro consultor científico da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e vice-presidente da Sociedade Mineira de Infectologia (SMI), além de membro e parceiro científico das mais prestigiosas sociedades e instituições científicas mundiais. Esta crônica foi publicada originalmente no Jornal Estado de Minas e Starling autorizou o JORNAL PANORAMA a reproduzi-la.
Foto: divulgação