Os 18 anos da promulgação da Lei Maria da Penha, completados nesta quarta-feira, 7 de agosto, convidam a sociedade como um todo a repensar a cultura sexista que naturalizava – e, em muitos casos, ainda naturaliza – agressões psicológicas, patrimoniais e físicas no ambiente doméstico. Isso inclui as instituições da Justiça e seus membros, tais como os promotores de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG).
“Eu tenho a percepção de que não se trata de data comemorativa, mas uma data para reforçarmos o compromisso firmado perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos de se processar e julgar no tempo razoável os agressores de mulheres num contexto de violência doméstica e familiar”, avalia o promotor de Justiça Daniel Augusto de Camargo Lima Campos, da comarca de Pedra Azul, no Vale do Jequitinhonha.
Lima Campos vem enfrentando, desde 2021, um caso de feminicídio ocorrido em Divisa Alegre que vem desafiando o compromisso com a celeridade da Justiça. Em março daquele ano, um policial militar de outro estado teria assassinado uma cirurgiã dentista com a qual mantinha relacionamento afetivo. De acordo com o inquérito policial, ele teria atingido a cabeça da namorada com um tiro certeiro. O crime ocorreu na casa dela, de madrugada. O inquérito policial apontou que o agressor usou sua arma de serviço para atacar a namorada, pelas costas, quando ela tentava sair da própria casa. Três anos e quatro meses após a ocorrência, o caso ainda aguarda a data de designação da sessão de julgamento perante o Tribunal Popular do Júri.
“Para além do luto da morte, os familiares da vítima vivem um segundo luto, que é o luto da impunidade, que só vai cessar quando o réu for levado a julgamento”, avalia Lima Campos
O enfrentamento de um caso grave como este tem levado Lima Campos a refletir sobre os desafios do cotidiano do enfrentamento à violência doméstica. Ele estima que 80% das 18 audiências semanais que realiza na 1ª Promotoria de Justiça de Pedra Azul estejam ligadas a casos de violência contra a mulher. Diante do cotidiano conturbado, o promotor entende que o papel do MPMG passa por quebrar os ciclos de violência. Isso depende, entre outros fatores, do aumento da formalização das denúncias por parte das vítimas. “Nós tentamos mostrar às vítimas que o ciclo só vai se encerrar quando ela contribuir com a Justiça, quando ela testemunhar e nos trazer o seu relato completo”, explica. Para tanto, ele tenta mostrar para as mulheres o sucesso das medidas protetivas de urgência previstas na lei. “A Polícia Militar faz rondas preventivas para analisar se as medidas estão sendo cumpridas. Os agressores que descumprem as medidas, entrando em contato com a vítima ou não, podem responder até com prisão preventiva”, afirma.
Além disso, promotor avalia que o sexismo, pano de fundo da violência doméstica, é estrutural e permeia todas as classes sociais, ao contrário do entendimento do senso comum segundo o qual as mulheres pobres são as únicas vítimas. “O caso de Divisa Alegre desmistifica a impressão de que a violência doméstica acontece só dentro de um contexto doméstico de famílias de baixa renda. O machismo, grande causador do feminicídio no Brasil, é um problema estrutural que permeia todas as classes sociais”, avalia.
Outro caso brutal foi enfrentado em 2022 pelo promotor de Justiça Caio César Espírito Santo do Nascimento, que atua na comarca de Salinas. Num feriado de 21 abril, uma adolescente de 15 anos desapareceu ao sair de casa. Durante semanas, a mãe dela procurou por notícias, reunindo mensagens de whatsapp e conversando com amigas da filha. Ela então levou à polícia indícios que indicavam o feminicídio e procurou o MPMG. A partir dali, deu-se início ao inquérito policial, que acabou por confirmar a suspeita de que o namorado da adolescente, um trabalhador rural, a assassinou em um local ermo, com golpes de canivete no abdômen e de capacete na cabeça, e depois enterrou o cadáver. O crime causou grande comoção na cidade, seja pela idade da vítima, seja pela futilidade do motivo.
Em Salinas, os casos de violência doméstica são tratados pela 2ª Promotoria de Justiça, mas Nascimento, lotado na 1ª Promotoria, foi escalado para cuidar do caso por se tratar de homicídio qualificado como feminicídio. Refletindo sobre a trajetória neste caso, o promotor comenta que a lei parece estar, aos poucos, se enraizando na sociedade, a despeito da cultura sexista que ainda impera. No entanto, diante do cenário do feminicídio de Salinas, Nascimento ressalta que as campanhas de conscientização e sensibilização precisam também dar atenção à zona rural. Isso envolveria o uso de linguagens mais direcionadas a esse público, além da mobilização de redes de apoio às políticas públicas, como escolas, centros de referência da assistência social, conselhos tutelares e o próprio Ministério Público. “Quando lemos os documentos de algum caso de violência doméstica na zona rural, percebemos que são um quadro já sistemático de agressões”, relata o promotor.
Na percepção do promotor de Justiça, a menção a perseguições ou cerceamento da liberdade econômica estão crescendo nos boletins de ocorrência. Isso demonstra que violências sem marcas físicas também são levadas em consideração, fato importante para a aplicação concreta da lei. “Temos muitos casos nos plantões em que a mulher, no seu depoimento de vítima, menciona um quadro de opressão psicológica, afirma que se sente abalada psicologicamente. Essa é uma nova faceta no combate à violência contra a mulher”, opina.
Histórico
A Lei Maria da Penha é um importante marco na legislação brasileira, incorporando mecanismos para o enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher. Embora não se trate de uma lei penal, ela estabeleceu regras mais rigorosas para os crimes perpetrados no ambiente doméstico e familiar. Entre as ações está a responsabilização dos autores da violência, além de ações no eixo da prevenção, assistência e garantia de direitos.
A partir do registro de um fato criminoso, é deflagrada a investigação em um inquérito policial, que, uma vez concluído, é encaminhado ao Ministério Público. A promotora ou o promotor de Justiça deflagra a ação penal contra o autor da violência ou arquiva o procedimento, se não estiverem presentes os requisitos mínimos exigidos.
As inovações da Lei Maria da Penha foram resultado de um amplo debate público à época. As discussões vinham embasadas, de antemão, em dois documentos internacionais que cobravam atitudes dos países signatários, entre os quais estava o Brasil. A Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, mais conhecida como Convenção de Belém e publicada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), tratou do assunto em 1994. Quinze anos antes, o tema havia sido abordado na Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw, na sigla em inglês), publicada pela Organização das Nações Unidas (ONU).
No entanto, 45 anos após a Cedaw, a percepção de um cenário ainda crítico e enraizado na sociedade é comprovado pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A publicação, de responsabilidade da organização da socidade civil Fórum Brasileiro de Segurança Pública, analisa dados dos governos estaduais, incluindo polícias militares e civis, e dedica um capítulo específico sobre violência doméstica. A perspectiva do documento é de que, comparando os dados de 2023 com os anos anteriores, a violência contra a mulher segue crescendo no Brasil. As estatísticas levam em conta os homicídios e feminicídios consumados e tentados, agressões em contexto de violência doméstica, ameaça, perseguições, violência psicológica e estupro. Todos esses indicadores tiveram elevação, com exceção do homicídio, que caiu 0,1%. Entretanto, a publicação alerta que há uma tendência de migração das notificações de homicídio para o enquadramento como feminicídio. Esta última tipologia de crime aumentou 0,8% na comparação com 2022.
A mudança no enquadramento dos crimes é um fenômeno esperado tendo em vista os dez anos da promulgação da lei 13.104, de 2015. A nova legislação complementa a Lei Maria da Penha ao tipificar como feminicídios e qualificar como hediondos os crimes em que a mulher tenha sido vítima de homicídio em função da sua condição de gênero e no contexto de violência doméstica. “Hoje, quase dez anos depois, é de se esperar que os profissionais do sistema de justiça como um todo, e em especial os responsáveis por este primeiro registro – os policiais – estejam mais adaptados a reconhecer o feminicídio e diferenciá-lo das demais formas de homicídio, o que deve impactar na qualidade do registro”, explica o anuário.
Estatísticas
Na opinião da coordenadora do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Cao-VD), Patrícia Habkouk, apesar ainda da necessidade de mudança cultural, houve avanço quanto à interpretação da legislação. A promotora de Justiça defende que a ampliação das denúncias e dos pedidos e dos deferimentos de medidas protetivas de urgência contribuem para a redução dos casos de feminicídio. Ela está em fase final de um estudo de 497 casos de feminicídio consumados entre 2021 e 2023 em Minas Gerais.
Apesar dos desafios de uma pesquisa desse porte, realizada de forma artesanal, os dados preliminares apontam um cenário de maior responsabilização dos autores das mortes violentas de mulheres. A análise dos boletins de ocorrência e dos processos judiciais mostraram que em 43% dos casos houve prisão em flagrante dos autores. Em 69% dos casos, o processo criminal destinado à responsabilização dos feminicidas foi iniciado. Dos acusados submetidos a julgamento perante o Tribunal Popular do Júri, 93% foram condenados por homicídio e, desses, 90% tiveram a qualificadora do feminicídio reconhecida. A publicação completa será lançada no dia 23 de agosto, Dia Estadual do Combate ao Feminicídio.
Patrícia Habkouk destaca que durante anos a Lei Maria da Penha teve sua constitucionalidade questionada e que apenas em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a constitucionalidade da referida norma e, de lá para cá, o trabalho do MPMG tem sido diário para a aplicação da Lei. A ampliação da concessão das medidas protetivas e a responsabilização dos autores, conforme detectados na pesquisa, tem auxiliado no alcance do principal objetivo da lei, que é assegurar a mulheres e meninas o direito a uma vida livre de violência.
A promotora destaca, ainda, a atuação das instituições em rede são importantes. “O trabalho de uma instituição impacta no trabalho da outra. No caso dos autores de feminicídio, a Polícia Militar realiza um trabalho importante quando é acionada e se depara com a cena de um feminicídio, isolando a área, acionando a Polícia Civil, que aciona a perícia técnica e colhe os dados periciais relevantes que irão compor o inquérito policial”, explica. Uma vez terminadas as investigações, o Ministério Público ajuíza ação penal e adota medidas para punição do feminicida. O Poder Judiciário, por meio de juízes ou do conselho de sentença, se somam a este processo julgando o agressor.
“Todas as pessoas envolvidas no cumprimento da Lei Maria da Penha trabalham para que as mulheres acessem ao sistema de proteção previsto na lei no primeiro episódio de violência e sigam vivas. Quando uma mulher morre porque não conseguiu apoio e proteção, não só o poder publico mas toda a sociedade falhou”, conclui.
Fonte: MPMG
Foto: Fábio Rodrigues-Pozzebon / Agência Brasil