De primeiro vejo a partida de amigos mais velhos e dos novos também. As irmãs do meio morrem. Conhecidos morrem, famosos idem. E você está na bica. É um pingo, talvez o próximo. O seu ao redor fica mais enxuto ou seco. Não adianta querer trocar idéia com fulano que já se foi. O telefonema da manhã, quase madrugada, não chega mais. Guarda-se o aparelho, cancela-se a linha.
Pegou a gripe? Talvez seja o empurrão. Está com sono mais cedo, a visão é parca, o ritmo do andar mais lento , gestos comedidos e a terrível vontade de conversar com a mãe que já faleceu. Até fala com ela: viu mamãe? E aguarda a resposta.
Vive-se dentro da possibilidade da morte. Mas a amiga diz: qualquer um pode morrer, não precisa estar nos 82 de funcionamento.
Verdade. Mas penso no organismo se organizando e desorganizando há 82 anos, nas celulas trocadas a todo momento. Tanto esforço para a unha crescer, o cabelo, as vértebras encurtadas , sem o líquido que evita a fricção , como se mantém? Há 82 anos o corpo trabalha sem feriado, folga sabática, os neurônios continuam com suas sinapses , o intestino intestina, o coração no antigo ritmo com sutis modificações, tudo continua como antes, em tese. Mas o pingo deseja pingar. E você se pega a desejar que chegue ao dormir. Não há como se enganar: vive ainda. Mas, e se?
Fonte: Esther Lucio Bittencourt , Acadêmica Do filme "O Sétimo Selo" de Ingmar Bergman.