A guerra na Síria, que começou em 2011 após os protestos da Primavera Árabe, transformou-se em um conflito internacional envolvendo potências globais e regionais, cada uma com interesses próprios. Grupos armados de oposição ao regime de Bashar al-Assad, que receberam apoio de países como Qatar, Arábia Saudita, Turquia, Estados Unidos, Israel e membros da União Europeia, buscaram derrubar o governo sírio. No entanto, essa coalizão de oposição inclui também grupos extremistas islâmicos, o que gera um risco significativo de o país se tornar uma teocracia islâmica no futuro.
Especialistas consultados pela Agência Brasil alertam que, enquanto o regime de Assad era secular, separando Estado e religião, muitos dos grupos que lutaram contra ele têm uma ideologia radical islâmica. Marcelo Buzetto, pós-doutor em Ciências Sociais e especialista em Relações Internacionais, destaca que a guerra não foi uma simples guerra civil entre grupos sírios, mas sim um confronto internacional com a participação de potências estrangeiras. “Esses grupos todos que derrubaram o Assad são financiados por vários países”, afirma Buzetto, lembrando que o apoio veio de diferentes formas, como dinheiro, logística, armas e informações.
A presença de grupos extremistas como o Hayat Tahrir al-Sham (HTS), que é um braço da Al-Qaeda, traz uma preocupação ainda maior, pois eles defendem a implementação da Sharia, a lei islâmica, e buscam estabelecer um regime baseado em princípios wahabistas, doutrina ultraconservadora originada na Arábia Saudita. Buzetto ressalta que, para esses grupos, a Síria deve ser governada de acordo com a jurisprudência islâmica, o que representaria uma ameaça à secularização do país.
No livro A Segunda Guerra Fria, o historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira descreve como, após a queda de Muammar Gaddafi na Líbia, foram recrutados milhares de jihadistas para sustentar a guerra na Síria. O objetivo era derrubar o regime de Assad e isolar o Irã, aliado de Damasco, visto como uma ameaça pelas potências ocidentais e monarquias árabes sunitas.
Leonardo Trevisan, professor de Relações Internacionais da ESPM, acrescenta que as potências ocidentais e as monarquias sunitas tinham interesse em desestabilizar Assad para enfraquecer a aliança do regime com o Irã e o Hezbollah, além de abrir caminho para os Acordos de Abraão, que visavam normalizar as relações de alguns países árabes com Israel. Para Trevisan, a criação de uma Síria sunita representaria a expulsão do Hezbollah e o alinhamento de mais países árabes com Israel, o que teria implicações econômicas e políticas significativas para a região.
Por outro lado, a Rússia, o Irã e o Hezbollah formam o chamado “Eixo da Resistência”, em apoio ao governo de Assad. Esses países consideram que a queda de Assad prejudicaria a estabilidade do Eixo, afetando também seus próprios interesses geopolíticos na região.
Gasoduto e interesses geopolíticos
Outro fator crucial para entender a guerra na Síria é a geopolítica em torno da construção de um gasoduto. A Síria está situada em um ponto estratégico que conecta o Ocidente à Rússia, China e Irã, potências que medem forças na região. Marcelo Buzetto destaca que, enquanto as monarquias árabes e os Estados Unidos propunham a construção de um gasoduto que atravessaria a Síria, Assad optou por estreitar relações com Rússia, Irã e China, prejudicando os planos ocidentais. A disputa pelo controle do gás e petróleo da região também foi um dos fatores que alimentaram o conflito.
A questão curda e a intervenção turca
A Turquia, outro ator chave no conflito, tem interesses próprios na Síria, especialmente em relação aos curdos. O governo de Recep Tayyip Erdogan teme o fortalecimento do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que poderia inspirar movimentos curdos dentro da Turquia. “A Turquia não quer ouvir falar de fundar um Estado curdo”, afirma Trevisan. O fortalecimento dos curdos na fronteira síria é visto como uma ameaça à estabilidade do regime turco, que teme que isso gere mais demandas autonomistas dentro de seu próprio território.
Risco de uma teocracia islâmica
O risco de uma Síria governada por grupos jihadistas é uma das maiores preocupações dos especialistas. Com o apoio de potências ocidentais e países árabes sunitas, muitos dos grupos rebeldes são adeptos do wahabismo, uma ideologia extremista que defende uma interpretação rígida da Sharia. “Esses grupos mercenários e terroristas são, na sua maioria, adeptos da corrente sunita chamada wahabista”, afirma Buzetto, que alerta para os perigos de uma eventual tomada de poder desses grupos na Síria.
Leonardo Trevisan também compartilha essa preocupação, avaliando que a Síria pode caminhar para a criação de um novo califado, com base nas leis islâmicas. “Corre-se o risco de virar mais uma teocracia islâmica”, alerta, citando o exemplo do Talibã no Afeganistão, que após a retirada dos Estados Unidos, reverteu os avanços sociais, como a educação para meninas.
Além disso, a Comissão Internacional Independente de Investigação da Síria da ONU tem documentado abusos de direitos humanos cometidos por diversos grupos rebeldes, incluindo torturas, execuções e prisões arbitrárias. Esse cenário aumenta o temor de que, se esses grupos assumirem o controle total, a Síria possa se tornar um regime de extrema intolerância, onde as liberdades individuais e os direitos humanos seriam severamente restritos.
A situação da Síria continua a ser um dos conflitos mais complexos do século XXI, com implicações geopolíticas profundas e um risco real de que um regime teocrático islâmico seja instalado no país, com impactos para toda a região.
Com as informações da Agência Brasil
Foto: Ahmed Akacha