Tendo a Constituição Federal como tema central, palestras abordaram Ministério Público, atuação criminal, crise climática, racismo, desigualdade entre outros assuntos
No quarto dia de atividades, durante toda esta quinta-feira, 12 de setembro, a Semana do Ministério Público 2024 contou com uma série de painéis simultâneos, com a participação de juristas renomados.
Painel 1
Pela manhã, no primeiro painel os promotores de Justiça do MPDFT Bruno Amaral Machado e Antônio Henrique Graciano Suxberger falaram, respectivamente, sobre “Ministério Público e academia: desafios e interlocuções possíveis” e “Ministério Público: atuação criminal como política pública”. A mesa foi presidida pelo procurador-geral de Justiça de Goiás, Cyro Terra Peres.
Com ampla dedicação a estudos empíricos que orbitam em torno de temas como a criminalidade e os direitos humanos, Machado trouxe a importância de membros dos MPs se atentarem ao conhecimento produzido pela pesquisa científica. O promotor de Justiça defendeu que o olhar externo às atividades do MP pode contribuir para tirar os membros dos MPs da “zona de conforto”. Isso contribui para as instituições darem respostas mais assertivas às cobranças da sociedade civil por resultados. “Você tem produção acadêmica que pode ser relevante, não apenas teórica e dogmática, mas também empírica, que toca em questões centrais de nossa atuação. Pode ter pesquisas que avaliam nossa instituição, o nosso atendimento ao público, a forma como o destinatário percebe e avalia nosso trabalho. Ou seja, é um feedback necessário que pode apontar falhas e práticas que devem ser aprimoradas”, avalia o promotor. Em um dos exemplos, o palestrante citou estudos sobre crimes brutais no entorno de Brasília, em que os gargalos do sistema de investigação foram identificados e, assim, foi possível debater estratégias para azeitar o sistema de inteligência, apuração e tramitação dos casos. “A gente tem muita produção acadêmica, não é possível a gente simplesmente se fechar e se encastelar, nem mesmo ter uma atuação indiferente a esse conhecimento produzido na academia”, complementou.
Mantendo o tom provocativo, Suxberger proferiu palestra com o tema “Atuação Criminal como Política Pública”. De acordo com o promotor, que é doutor em Direito pela Universidade Pablo de Olavide, da Espanha, e pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra, a formação acadêmica do Direito no Brasil não fornece soluções para desafios cotidianos nas Promotorias. A lacuna inclui as políticas públicas de segurança, cuja avaliação, na visão do pesquisador, exige compreender a relação entre instrumentos do direito e arranjos institucionais do Estado. Sem tal entendimento, o MP acaba por atuar apenas na esfera repressiva, deixando de lado uma abordagem mais ampla (social, territorial e econômica) que poderia contribuir para acompanhar, monitorar e promover as políticas públicas de segurança. “Nossas maiores falhas estruturais estão na ausência de respostas ao problema da criminalidade como tema de política pública. O MP deveria ser o provocador desse debate, cumprindo um papel propositivo”, comentou. Ele citou como avanço positivo de respostas à sociedade a instalação da Casa Lílian, inaugurada na última segunda-feira, 9 de setembro, pelo MPMG. O espaço oferece atendimento humanizado a vítimas, diferenciando-se de espaços frios e pouco acolhedores das instituições tradicionais de justiça.
Painel 2
No segundo painel, presidido pelo procurador-geral de Justiça de Roraima, Fábio Bastos Stica, o promotor de Justiça do MPSP Ricardo de Barros Leonel falou sobre atualidades do processo estrutural. De acordo com o palestrante, o conceito diz respeito à solução de conflitos estruturais para resolução de problemas estruturais. “Não é somente declarar ilegalidade ou impor uma obrigação. O objetivo é equacionar um problema complexo e modificar prospectivamente a realidade”. Ele destacou que a discussão sobre processo estrutural surgiu em 1954, mas o tema começou a ganhar expressão nos últimos anos. “O processo estrutural diz respeito a questões complexas em assuntos como saúde, educação, telecomunicações, transporte entre outros. Ele trata não somente de uma intervenção pontual, como, por exemplo, uma reparação por conta de um dano ambiental, mas de algo que gere um impacto coletivo em benefício da sociedade, algo que, na maioria das vezes, uma atuação tradicional do sistema de justiça não consegue alcançar”. Ainda segundo o professor, o melhor caminho para enfrentar questões estruturais são os processos coletivos ou originários do Supremo Tribunal Federal. “O Ministério Público, possivelmente o principal ator em matéria de tutela coletiva, tem que se preparar para enfrentar esses casos, atuando de maneira mais abrangente. Nos conflitos estruturais é necessária uma abordagem construtiva e prospectiva”.
Na exposição “Constituição de 1988 e o processo de constitucionalização do Ministério Público”, o procurador de Justiça aposentado do MPMG Gregório Assagra de Almeida destacou que a Constituição de 1988 inseriu no Brasil o estado democrático de direito como estado da justiça material. “É o que está lá no artigo primeiro da Constituição e também no terceiro. A Constituição deixou claro que, no Brasil, os direitos e as garantias constitucionais fundamentais são individuais e são coletivos”. Segundo o palestrante, “a Constituição foi além, dando dignidade condicional para a maioria das ações coletivas. A Carta consagrou um modelo de Ministério Público bem qualificado, deixando claro que é uma instituição permanente, essencial à função jurisdicional do estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais individuais”. Ainda de acordo com Gregório Assagra, o Ministério Público, nesse processo de constitucionalização, passa a ser visto como uma garantia fundamental de acesso à justiça. “O conceito da Constituição é um conceito estabelecido pelo próprio constituinte, lá no artigo 127. Por isso, o Ministério Público cada vez mais precisa se organizar, atuar por meio de procedimentos legítimos para a defesa da democracia, do regime democrático, dos interesses sociais e da ordem jurídica. E não é só. Esse processo de constitucionalização do Ministério público impõe uma revisão dos princípios institucionais”, opinou.
Painel 3
Com presidência de mesa da procuradora de Justiça do MPMG Célia Beatriz Gomes dos Santos, no início da tarde, o terceiro painel contou com a ex-procuradora-geral da República Raquel Dodge, que fez a apresentação “O papel do Ministério Público na justiça climática: enfrentando os problemas do século XXI”. Ao falar sobre o tema, Raquel Dodge elegeu a questão como o principal problema global do século 21. Os recentes eventos climáticos do Rio Grande do Sul, as queimadas no Pantanal, a falta de qualidade do ar em várias cidades do país foram exemplos citados pela jurista para destacar como a crescente emissão de gases do efeito estufa e a diminuição do sequestro de carbono afetam os regimes de seca e de chuva e os tornam cada vez mais imprevisíveis. “Essa compreensão é o primeiro passo para o MP trabalhar o assunto. O clima é um direito humano fundamental e deve ser tratado de forma prioritária. A instituição tem o desafio de cobrar por políticas públicas e zelar por esses direitos, pelos mais vulneráveis, pelas minorias climáticas, que são os mais afetados pelos efeitos danosos. Há também o desafio ético de proteger o clima para esta e para as futuras gerações. O Ministério Público precisa compatibilizar as soluções ambientais com as soluções climáticas”, afirmou.
Na sequência, a cientista política, professora da USP, Maria Teresa Sadek abordou o Ministério Público a partir de um olhar sobre a Constituição Federal na perspectiva de construção das instituições. Segundo ela, o crescimento do Ministério Público se deu a partir da promulgação da Lei da Ação Civil Pública, empoderou-se após a Constituição Federal de 88, tornando-se capaz de garantir a lei, a democracia e o estado de direito. Porém, para a professora, os textos antigos são tão abstratos que muitas vezes são de pouco valia. “Vemos nos últimos anos uma mudança radical nas forças dos poderes, com o Executivo perdendo recursos de poder para o Legislativo e o Poder Judiciário crescendo exponencialmente, acompanhado pelo MP”. Nesse contexto, Sadek considera que o Ministério Público precisa “olhar para fora, saber quem são os inimigos, pois pode vir a perder atribuições”. Ela considera que o MP teve ganhos com a CF, porém precisa se atentar aos riscos provenientes de uma possível visão paternalista, do corporativismo e da estrutura atual em que o indivíduo tem a independência funcional, e não a instituição.
Painel 4
No quarto painel, presidido pelo promotor de Justiça do MPMG Luciano Badini, a ouvidora do Supremo Tribunal Federal (STF), juíza de Direito do TJSP Flávia Martins Carvalho, partiu da pergunta “O direito à busca da felicidade é para todos?” para falar sobre as desigualdades que desafiam a equidade formal posta pela Constituição Cidadã de 1988. Citando trechos da música “Ismália”, do rapper Emicida, Flávia discorreu sobre uma série de desigualdades estruturadas por um processo de socialização racista e patriarcal. Para ela, a Constituição ainda não foi capaz de mudar esta realidade, mas “é preciso lutar para honrar aqueles que nos antecederam e foram capazes de imaginar uma liberdade que nunca viram”. No futuro, se uma sociedade efetivamente igualitária chegar, então a “Constituição terá ido muito além do que a nossa imaginação pode alcançar”, concluiu a juíza.
Encerrando os painéis, o jurista, professor da UERJ e ex-procurador da República Daniel Antônio de Moraes Sarmento também apontou a desigualdade como um dos grandes desafios para o constitucionalismo brasileiro, juntamente com a crise climática, a ameaça ao regime democrático e a disfuncionalidade do presidencialismo de coalizão. Conforme o palestrante, o discurso igualitário é sabotado por uma sociabilidade hierárquica, fundada em cinco campos de desigualdade: econômica, cultural, de acesso às liberdades para que as pessoas possam fazer suas escolhas, da partilha assimétrica do poder e da justiça socioambiental. Segundo Daniel, a profunda desigualdade que marca a sociedade brasileira é o grande desafio quando se fala em implementação da Constituição Federal de 1988.
Fonte: MPMG
Fotos: Eric Bezerra/MPMG