O tempo não é uma névoa espessa, leve, que vem, nos envolve com seus encantos e mistérios e passa por nós. Não! O tempo é uma rede densa, pesada, como uma corrente em elos de ferro e aço que arrasta tudo que está a sua frente e a sua volta para o fundo profundo da história, o porão das parcas memórias. Se em um tempo de sonhos e esperança a névoa suave da poesia e da música nos deu o lirismo dos grandes festivais culturais, tempos depois arrastou tudo para o fundo escuro da vida. Uma pena!
Olho para o presente, e pergunto, temendo o futuro: Cadê os festivais da canção? As festas populares tão regionais e interioranas? As feiras de cultura? O Barato de Iacanga e os lendários festivais de música das TVs, o Melhor dos Festivais de Minas… Se foram todos, como que levados pelo arrastão da vida que Elis Regina sugeriu em rede nacional ao interpretar canção de Edu Lobo e Vinícius de Moraes, trazendo para a interpretação até então protocolar dos festivais da canção, elementos teatrais, cênicos, redimensionando assim a forma de apresentar uma música inédita para a avaliação de jurados e público.
Desde então, procurava aqui e ali o que acreditava estar esquecido, extinto, quando encontrei em julho deste ano o Festivale, festival de cultura regional realizado de forma itinerante nas cidades do Vale do Jequitinhonha, o velho Vale da vida, do verso, do verde e da viola.
Em uma semana, artistas populares, mambembes, agentes de cultura, artesãos, contadores de história, grupos folclóricos se reúnem ao redor da grande fogueira das ideias e dos ideais para manter a velha chama acesa, acender os velhos sonhos… Vão assim como os pequenos córregos, os riachinhos, se esgueirando pelas veredas do dia em busca do rio da liberdade, o Jequitinhonha… Estavam todos lá, como os primeiros, para cantar, regar, resgatar, proteger, reverenciar e viver a verdadeira cultura do Vale do Jequitinhonha, isso feito anualmente há exatos 44 anos, contabilizando neste ano a trigésima nona edição e uma considerada especial, devido a pandemia do novo coronavírus.
Vi naqueles dias que estive ali, na acolhedora cidade de Couto de Magalhães de Minas, a pouco mais de 25 quilômetros de Diamantina, a Minas que acreditava estar esquecida em algum vale longínquo, entre montanhas, distante de tudo e de todos. Vi a Minas profunda, a Minas Roseana, a Minas da mina d’água, do olho da vida, a Minas que reverenciamos e amamos, desde sempre.
No Festivale assisti a um dos acontecimentos mais impactantes de toda minha história na literatura, a Noite Literária, quando poemas são apresentados como gaivotas que mergulham do azul imenso céu no grande mar azul do sonhos, por intérpretes quase que profissionais – atores em sua maioria – que dão vida a versos quase mortos, falando das grandes desilusões de nossa existência e das mazelas da alma Humana. A Noite Literária do Festivale deveria ser apresentada em teatros dos grandes centros urbanos, pois sua originalidade e densidade poética a tornam um espetáculo único, irmanando o teatro, a música e a poesia em um só espetáculo. Um acontecimento, do mais alto nível artístico e cultural.
Como a alma de um povo está traduzida em sua cultura, o Festivale a estampa em seu artesanato, em sua música, em sua literatura e a apresenta para todos nós. Ela está viva em tudo aquilo que as águas do rio Jequitinhonha alimenta há séculos, dando vida a um jeito muito original de ser, ver, viver e fazer da vida, uma grande e inconcebível arte.
Petrônio Souza é jornalista e escritor
Foto: reprodução/ instagram @festivaledojequitinhonha