Em fevereiro de 2017, Irene Jucá, de Fortaleza (CE), usou a internet para apresentar uma ideia legislativa. Pelo Portal e-Cidadania, do Senado, ela sugeriu a criação de Centros de Atendimento Integral para Autistas no Sistema Único de Saúde. No ano seguinte, a ideia foi transformada em um projeto — aprovado pelo Senado e pela Câmara — e pode se tornar lei, algo que há poucos anos seria impossível. Nos 200 anos do Senado, a Agência Senado relembra como evoluiu a participação popular na Casa.
Na história das Constituições brasileiras, a participação popular direta do cidadão nas discussões e na criação das leis é algo recente. Foi apenas na Constituição de 1988 que essa participação ganhou previsão expressa e, no Senado, o processo de participação da população evoluiu para garantir que os cidadãos tenham acesso a ainda mais meios para atingir direitos que hoje são previstos na Constituição, como a iniciativa de projetos de lei. A Casa é reconhecida internacionalmente como exemplo por seu programa de participação popular.
“Nós já fomos convidados para apresentar o programa e-Cidadania em eventos no Congresso norte-americano, no Parlamento Europeu e em outros eventos que aconteceram em outros parlamentos, em organizações. Isso mostra a relevância e o reconhecimento do trabalho que o Senado tem feito em relação à participação popular”, disse Alisson Bruno, coordenador do programa.
O e-Cidadania permite que os cidadãos façam parte do processo Legislativo e participem não só da elaboração de proposições, como também dos debates que ocorrem no Senado, além de opinar sobre projetos em tramitação na Casa. Mas nem sempre foi assim. Desde a primeira Constituição brasileira, a imperial de 1824, quando a eleição para o Parlamento ocorria de forma indireta e com exigência de renda para o eleitor, até os dias atuais, muitas foram as mudanças. O marco do início desse processo foi a Carta Magna atual.
“Podemos dizer que a Constituição de 1988 efetivamente marca uma linha divisória no que diz respeito à participação social direta dos cidadãos nas políticas públicas. Antes da Constituição de 1988, praticamente não havia previsão expressa de participação popular direta dos cidadãos nos negócios públicos em termos constitucionais, mas apenas de forma indireta, em especial por intermédio de representantes eleitos para os Poderes Executivo e Legislativo”, explicou o consultor legislativo Fernando Trindade.
O consultor lembrou que as restrições ao voto, por exemplo, estiveram presentes em todas as Constituições anteriores. Além de renda mínima, exigida até 1881, havia, por exemplo, a exigência de alfabetização para que as pessoas pudessem votar, regra que só foi alterada em 1985, com a Emenda Constitucional 25.
Direito de Petição
Antes da Constituição Cidadã, de acordo com o consultor, o que havia eram “antecedentes” dessa participação. O mais frequente deles, presente desde a Constituição Imperial de 1824, é o direito de petição, que aparece nas constituições seguintes, com algumas alterações. Por essa regra, todo cidadão pode apresentar por escrito ao Poder Legislativo e ao Poder Executivo reclamações, queixas ou petições.
“A Constituição de 1988, como as anteriores, também inscreveu o direito de petição. Todavia, o direito de participação direta dos cidadãos nos negócios públicos foi reconhecido de forma inédita, atravessando todo o texto constitucional e indo muito além do que até então haviam estabelecido as Constituições anteriores”, explicou Trindade.
Antes mesmo da Assembleia Nacional Constituinte, o Senado, antecipando-se à instalação, criou, em 1986, o projeto Constituição — A Voz do Cidadão, que procurou mobilizar a sociedade em torno do processo. Para isso, colocou à disposição, nas agências dos Correios de todos os municípios do Brasil, 5 milhões de formulários para envio de sugestões aos constituintes. Foram recebidas mais de 72 mil cartas com essas sugestões.
Já na sua elaboração, a partir de 1987, a atual Constituição trouxe várias inovações no que diz respeito à participação dos cidadãos. O processo de elaboração foi marcado por expressiva participação popular, com audiências públicas e com a apresentação formal de emendas populares de iniciativa de movimentos sociais. No total, foram apresentadas 122 emendas populares, e várias delas foram aprovadas no texto, como a que prevê os mecanismos de democracia direta: iniciativa popular de lei, plebiscito e referendo.
Iniciativa popular
Pela Constituição, a população pode apresentar projetos de lei. Foi assim que surgiu, por exemplo, Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135, de 2010). Um projeto de lei de iniciativa da população tem que ser assinado por, no mínimo, 1% dos eleitores do Brasil, distribuídos por pelo menos 5 estados, com o número de eleitores em cada um deles não inferior a 0,3%. Atualmente, isso significa que, pelo menos 1,56 milhão de pessoas precisa assinar um projeto desse tipo.
Essa realidade começou a mudar em 2012, com o e-Cidadania, criado pelo Senado. Com o programa, qualquer cidadão pode apresentar não um projeto, mas uma ideia legislativa pelo Portal e-Cidadania na internet ou ligando para a Ouvidoria do Senado (0800 61 2211). A ideia fica disponível no portal e, caso consiga 20 mil apoios on-line no prazo de quatro meses, se transforma em sugestão legislativa e é encaminhada para análise da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH).
Isso significa que a ideia legislativa é uma forma de fazer com que as propostas dos cidadãos possam chegar a quem tem o poder, garantido pela Constituição, de apresentá-las como projeto (a comissão). Mesmo quando uma ideia não alcança os 20 mil apoios necessários, a visibilidade no portal pode trazer benefícios.
“Essa ideia pode, sim, ter mais chance de ser transformada em projeto de lei. Mesmo as ideias com poucos apoios ou até mesmo nenhum apoio podem ser adotadas pelos senadores e transformadas em projetos, como já aconteceu. Então hoje é muito mais fácil você apresentar uma ideia para o Parlamento e essa proposta tramitar como um projeto de lei”, explicou Alisson Bruno.
Todo autor de ideia legislativa que alcança 20 mil apoios é convidado a elaborar um testemunho. Esse relato reúne mais detalhes sobre a ideia e pode trazer informações relevantes para orientar o senador relator da sugestão na elaboração de seu parecer. Caso seja aprovada, a sugestão se torna um projeto de lei feito com base na ideia, mas apresentado como projeto da comissão, hipótese prevista na Constituição.
Ideias de sucesso
Foi assim, com uma ideia legislativa, que Irene Jucá conseguiu ter um projeto aprovado pelo Senado e depois pela Câmara dos Deputados. Mãe de Letícia, uma jovem autista, Irene apresentou uma ideia que havia sido elaborada em conjunto com outras mães de Fortaleza, para propor uma mudança de legislação. De acordo com a ideia, o Sistema Único de Saúde (SUS) deveria oferecer, em um mesmo lugar, todas as terapias necessárias para crianças e jovens autistas.
Após a apresentação, Irene e as outras mães enviaram mensagens a conhecidos e foram às ruas para pedir apoio à causa. Alcançaram os 20 mil apoios necessários e, com isso, a ideia legislativa foi transformada em sugestão legislativa (SUG 21/2017), aprovada pela CDH na forma do Projeto de Lei do Senado (PLS) 169/2018. Aprovado na Casa, o projeto foi enviado à Câmara, onde também conseguiu a aprovação com mudanças (PL 3.630/2021).
O substitutivo da Câmara estabeleceu que a atenção integral às necessidades de saúde da pessoa com Transtorno de Espectro Autista será ofertada por meio dos Centros Especializados de Reabilitação da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência (RCPD). Agora, cabe ao Senado decidir sobre essas mudanças. Caso o texto seja aprovado, o projeto de Irene pode ser o primeiro proveniente de uma ideia legislativa a virar lei.
“Nós estamos plantando tâmaras. Temos esperança de dias melhores para tantas pessoas que precisam do tratamento”, disse Irene ao falar sobre a ideia, em 2023.
Irene Jucá e a filha Letícia: sugestão apresentada por meio do portal e-Cidadania tramita como projeto de lei Arquivo pessoal
Desde o lançamento do programa, 221 sugestões legislativas originadas de ideias cadastradas no Programa e-Cidadania foram encaminhadas para a CDH. Além do projeto proveniente da ideia de Irene, outras 36 sugestões se tornaram projetos de lei, como o PL 4.399/2019, que inclui a fibromialgia no rol de doenças dispensadas de carência para o recebimento de benefícios do auxílio-doença e da aposentadoria por invalidez. O projeto foi o primeiro oriundo de uma ideia legislativa a ser aprovado pelo Senado, em fevereiro de 2020. Agora, o texto aguarda análise da Câmara dos Deputados.
Interatividade em eventos
Mas não só de proposições vive o Parlamento. As audiências públicas e sabatinas de autoridades fazem parte do dia a dia do Senado e, em 2013, foi aberta a possibilidade de que cidadãos participassem mais ativamente desse tipo de evento legislativo. Assim como ocorre no cadastramento de ideias legislativas, os cidadãos podem enviar perguntas e comentários para esses eventos.
“Agora o cidadão pode participar ativamente, de forma facilitada, sem essa necessidade de incentivo formal direto do Parlamento. A participação é praticamente ampla e irrestrita, quase todas as pessoas no país podem participar de diversas etapas do processo legislativo, tanto pela internet quanto pelo telefone. Isso dá muito mais acessibilidade e imediatismo à participação”, comemorou o coordenador do programa.
Para ele, a participação se tornou parte do processo legislativo e os parlamentares adotaram como prática ouvir a população e considerar suas sugestões.
Hoje, palestras, seminários e sessões de debates temáticos que ocorrem no Senado também têm sido interativos. As perguntas e comentários enviados pelos cidadãos podem ser lidos ao vivo pelos senadores durante os eventos. Além de interagir com os sabatinados e participantes da audiência, os cidadãos recebem uma declaração de participação, que pode ser apresentada, por exemplo, nas universidades.
De acordo com levantamento do e-Cidadania, o evento interativo com maior índice de participação popular ao longo dos 11 anos de existência desse instrumento foi o debate sobre a extinção e redistribuição do terrenos de Marinha (PEC 3/2022). A audiência pública, feita em maio de 2024 contou com 5.065 manifestações cadastradas pelos cidadãos.
Outros eventos com grande participação popular por meio da ferramenta Evento Legislativo foram o debate sobre transparência no Sistema “S”, em 2018, com 2.430 manifestações cadastradas; o debate sobre a eficiência do passaporte sanitário no enfrentamento da pandemia, em 2022, com 2.103 participações; a audiência com o então ministro da Justiça Sérgio Moro sobre a notícias relacionadas à Operação Lava Jato, em 2019, com 2.099 manifestações cadastradas; e a sabatina do ministro Alexandre de Moraes para o Supremo Tribunal Federal, em 2017, com 1.976 perguntas de cidadãos.
Opinião sobre projetos
A ferramenta da Consulta Pública também foi criada em 2013. Todas as proposições em tramitação no Senado podem ser votadas pelos cidadãos via Portal e-Cidadania. O link para que o cidadão opine está disponível na página de cada proposição.
Caso o interessado não tenha em mente uma proposição específica sobre a qual queira opinar, é possível ver, na página da Consulta Pública, no Portal e-Ciadadania, as proposições mais votadas do dia e também fazer uma busca em todas as proposições, com filtros por autor, número, ano e tipo de proposição.
Em julho, antes do recesso parlamentar, duas proposições vinham recebendo grande quantidade de votos dos cidadãos: o PL 2.338/2023, que dispõe sobre o uso da Inteligência Artificial, e a PEC 48/2023, que insere na Constituição a tese do marco temporal para a demarcação de terras indígenas.
Oficina Legislativa
Além das três primeiras ferramentas instituídas pelo programa, foi inaugurada em 2020 uma nova forma de incentivar estudantes a participar do processo legislativo brasileiro: as Oficinas Legislativas. A iniciativa pretende estimular os alunos a refletir sobre a sua realidade e apresentar ideias legislativas. O projeto pode ser realizado tanto em ambiente presencial quanto virtual e o material didático está disponível no Portal.
Mais de 2 mil ideias foram elaboradas em oficinas legislativas. São oferecidas modalidades para os ensinos fundamental, médio e superior, e educação inclusiva, sendo esta a mais recente, instituída em 2022, com atendidos da Associação Pestalozzi de Brasília.
Fonte: Agência Senado
Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado