Por Ana Helena Tavares*
A pergunta que dá título a esse texto é uma indagação, quase um clamor, que passei a ouvir desde que, muito atrevidamente, resolvi escrever uma biografia do eterno bispo do Araguaia, cujo falecimento completa 4 anos no próximo dia 08 de agosto. Como respondê-la é algo que me angustia.
Acredito que as pessoas são profundamente influenciadas pelo contexto de suas épocas. Nesse sentido, para ousarmos dar uma resposta, é preciso pontuar antes de tudo que a formação de Pedro, jeito informal como o bispo gostava de ser chamado, é fruto de três grandes acontecimentos que o moldaram como ser humano e pavimentaram sua fé.
O primeiro foi a guerra civil espanhola, que devastava sua terra natal durante sua infância. As cortinas da casa do menino Pere, forma como se grafa seu nome em catalão, estavam sempre cerradas. E ele era uma criança curiosa, de olhos arregalados, que queria sempre abrir aquelas cortinas. Para ele, a guerra foi, em suas palavras, uma “escola superior de jornalismo”, pois ali ele aprendeu a perguntar, mas em muitos momentos as conversas eram só para os adultos e ele era obrigado a se calar. Rebelde desde sempre, chegou a participar de uma rádio clandestina durante a guerra.
Outro acontecimento que o influenciou foi a revolução cubana. Em 1967, um ano antes de vir para o Brasil, Pedro participou, em Roma, do Capítulo Geral dos Claretianos, sua congregação. Naquele ano, Ernesto Che Guevara era assassinado. Já conhecido entre seus pares pela luta por um mundo mais justo, Pedro foi apelidado de Che pelos participantes daquele encontro e a cela onde ele dormia foi chamada de Sierra Maestra.
Temos, então, que Pedro foi marcado por uma guerra e uma revolução. Mas não só. Um evento religioso de proporções mundiais, o Concílio Vaticano II, soprou ventos que sacudiram profundamente aquele jovem missionário. O Papa João XXIII, na encíclica Mater e Magistra, publicada meses antes da abertura do concílio, inspirou-se em Êxodo 3 para lançar o método “ver, julgar, agir”. “Eu vi o sofrimento do meu povo, ouvi os seus clamores, desci para libertá-lo”. É a base da Teologia da Libertação e foi o que Pedro praticou ao longo da vida, seja na Espanha, na África ou no Brasil. E, como ele deixou registrado em um de seus poemas, fez isso “até as últimas consequências”.
Voltamos, então, à pergunta do título, reformulando-a. Quem são hoje as pessoas que vão até as últimas consequências na luta pela libertação do ser humano? Onde estão? Bem, eu posso afirmar que conheço muitas. E grande parte delas conheci por causa do Pedro. É gente que semeia esperança. Gente de todas as áreas. E muitos, muitos jovens.
É bem verdade que a maioria dos representantes que temos hoje na política institucional e partidária nos faz crer que essas pessoas não existem. O mesmo acontece se olharmos os líderes religiosos. No entanto, não comungo com aqueles que acreditam estar tudo perdido. Assim como o Vaticano II trouxe bons ventos para os jovens religiosos dos anos 60, acredito que o papado de Francisco pode, a médio ou longo prazo, exercer papel semelhante. Diversos projetos inspirados pelas encíclicas do Papa, tais como a “Economia de Francisco e Clara”, o “Movimento Laudato Si” e o “Encantar a Política”, são bálsamos para os que sonham com o mundo que o bispo Pedro sonhou.
Obviamente, não há em vista nenhuma revolução como a cubana – o mundo, aliás, aponta o contrário – mas nas favelas Brasil afora há alguns moleques que vivem numa casa de portas, janelas e cortinas sempre fechadas com medo da guerra civil permanente. Quem sabe um desses não vai ter vontade de abrir tudo e de viver numa casa sem muros? E quem sabe não será capaz de entender que a casa é o mundo – a Casa Comum? E quem sabe não vai querer que nessa casa tenha pão para todos?
Nesse moleque vive Pedro Casaldáliga. Como vive na criança indígena que vê seus pais serem alvejados por pistoleiros. Como vive na finalista olímpica que foi criada em assentamento do MST. Como vive no entregador de aplicativo que é destratado por morador de condomínio de luxo.
Pedro vive naqueles que abraçam as causas que ele abraçou, mas, principalmente, vive em todos aqueles que a sociedade gostaria que morressem. E estes têm, em si, a potência da revolução.
*Ana Helena Tavares é jornalista, ex-diretora da ABI. Autora do livro “Um bispo contra todas as cercas – A vida e as causa de Pedro Casaldáliga” (Vozes, 2019).