Do alto do meu castelo, observo o mundo, enquanto o mundo me observa. Não leio mais jornais, há muitos anos desisti. Pelas janelas e terraços de casa, observo maritacas e outros pássaros, macacos e preguiças que assolam as minhas terras. Assim como no tempo de Gogol, camponeses pertenciam a seu senhor e alguns contabilizavam sua fortuna contando até as almas mortas, que na verdade nem eram assim tão diferentes do que suas almas vivas e escravizadas. Meu poderio se constitui de milhares de almas vivas e pulsantes. Digo vivas, porque são almas indômitas, impossíveis de escravizar, e dão o exemplo de como poderia ser a humanidade, se seguisse as suas intuições e instintos, em vez de aceitar e se dobrar aos desejos desumanos de seus senhores. Aliás, para que servem os senhores? Vivo sozinha no castelo, há muito meus filhos se foram, e aos poucos percebi que não precisava mais de criados. De vez em quando recebo alimentos que um rapaz deixa na porta de casa. Os alimentos são poucos, na minha idade já não se come muito. O dono da loja de onde vêm esses alimentos, recebe uma quantia por mês, mandada pelo advogado, a única pessoa com quem converso uma ou duas vezes ao ano, neste meu castelo inabitado. No início, tentou pôr-me a par do que ia pelo mundo, mas agora se cala, entendeu que não me interessa. Meus filhos sumiram em outras paragens, nem sei se estão vivos. Tenho netos? bisnetos? Não sei, o carteiro não aparece mais por aqui. Mandei tirar o telefone, sua campainha estridente me deixava louca. Através dele só chegavam a mim futilidades ou tragédias do mundo lá fora. Sou feliz, ou melhor: não sou infeliz. Meus pensamentos e eu nos bastamos.
Passo os dias pintando, faço retratos de mim, quando jovem, cercada de conhecidos e admiradores.
Me apaixonei uma vez. Na época abafava esse sentimento, preocupada que estava em ser aceita pela sociedade que me rodeava. Ela era linda, pura, alegre, nunca me aproximei nem me dei a oportunidade de dizer-lhe o que sentia por ela. Dentro de mim travava-se uma guerra sem quartel entre o que sentia e o que me era permitido sentir. Casei-me com um homem que eu não amava, submetia-me a seus desejos e caprichos, como todas as mulheres de bem devem agir. Vi de longe que aos poucos ela murchou, passou a rezar todo o tempo. Todos achavam que acabaria num convento. Seus pais lhe impuseram um casamento com um homem de duas vezes a sua idade. Ela acatou, eu quase morri de desgosto, sem perceber que eu tinha acatado primeiro. Rebelar-se não adiantaria, nós duas tivemos uma criação (em que fomos impregnadas desde os áureos tempos de nossa infância) povoada de santos, diabos, espelhos e luzes.
Há alguns dias (seriam meses?) fiz o retrato da paixão da minha juventude, com um terço na mão e um véu na cabeça. Era com ela que eu sonhava enquanto sofria com a indiferença do meu marido, com os alaridos das crianças que não desejei e do burburinho do mundo que me rodeava. Soube que alguns anos depois de casada suicidou-se. Soube disso, pois foi dela a última carta que recebi. Era um adeus sem cobranças, com ar de confissão, em que me pedia perdão por seus sentimentos impuros a meu respeito. Diziam que era histérica e estéril, mas depois de ler essas linhas vi que apenas era infeliz. Meu Deus! por que tive tanto medo de me aproximar dela? Era tola, covarde e talvez por minha culpa ela tenha desistido. O último livro que me veio de fora, e que releio até hoje, foi Orlando de Virginia Woolf. Poderíamos ter vivido uma vida assim, mas o destino e minha covardia me impediram de tentar.
Fiquei por aqui, no meu castelo, no meio da encosta do Corcovado, sem alegrias nem tristezas, distante dessa humanidade que inventou regras, guerras e conceitos que nunca devi acatar. O que me restou, foi minha solidão e o matraquear dos bandos de maritacas que cruzam o céu quando o sol se põe.
Inez Cabral, filha do João Cabral de Melo Neto
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